Em Ensino de Filosofia e Currículo (Vozes, 2008, Ufsm, 2015) explorei o tema das muitas faces da filosofia e a sua “profusão grafomórfica“. As “muitas faces” diz respeito a coisas como a diversidade de métodos, temas, níveis de complexidade da filosofia, coisas assim; a “profusão grafomórfica” indica as muitas formas de apresentação da filosofia: ensaios, tratados, romances, enciclopédias, etc. No mesmo livro explorei, com a ajuda de conceitos de Winnicott, a questão do lugar da filosofia na vida adolescente. Com base nessas explorações, destaquei a importância da distinção kantiana entre o “conceito escolástico” e o “conceito do mundo” da filosofia.
O “valor absoluto” da filosofia está ligado ao “conceito do mundo” da filosofia: o fato que ela se ocupa com os grandes temas que surgem para a razão humana:
a) que coisas podemos de fato conhecer, até onde pode ir, com segurança, o conhecimento humano, quais são suas fontes?
b) O que devemos fazer, como devemos agir?
c) Quais esperanças podemos ter?
Essas três grandes áreas de perguntas representam os principais interesses racionais que temos, em áreas de discussão como a Ontologia e a Teoria do Conhecimento, a Moral e a Religião. E elas se remetem a uma única pergunta: o que somos nós, os humanos?
Essas quatro curiosidades humanas não precisam ser justificadas. É disso que decorre o valor absoluto da filosofia, sua dignidade e altivez. Essa face da filosofia também é chamada por Kant de “cosmopolita”. Imagino que essa expressão tenha sido usada por ele porque ela remete para o fato de que qualquer ser humano um dia, de algum modo, faz essas perguntas, explicita ou implicitamente.
Mas a filosofia tem outra face, o seu “significado sistemático” (ou “escolástico”), que é mais modesto. Aqui trata-se do cultivo de habilidades. Nessa face da filosofia temos que nos prover de conhecimentos básicos, bem ligados entre si, sobre os aspectos mais fundamentais da racionalidade humana. Não por acaso Kant falou longamente sobre essa face da filosofia no seu manual de Lógica. Sem essas habilidades o estudo das quatro perguntas corre o risco de ser apenas conversa fiada. Os estudos da “filosofia no sentido de escola” organizam uma espécie de lastro ou base conceitual cujo objetivo é o mapeamento das capacidades do entendimento humano.
Qual é a importância dessa distinção entre a face grandiosa e a face modesta da filosofia? Bom, eu acho que temos que temos que reconhecer que as coisas são assim (ou muito parecidas) como Kant nos sugeriu. Em segundo lugar, depois desse primeiro reconhecimento, acho que temos que reconhecer, como professores de filosofia em qualquer nível que qualquer didática da filosofia precisa equilibrar essas faces, de algum modo. Isso quer dizer que o equilíbrio entre elas faz parte dos princípios fundamentais de uma didática da filosofia.
Esses pensamentos me atormentam desde que publiquei o Ensino de Filosofia e Currículo, em 2008. Se há um princípio que tenho procurado desenvolver nas minhas reflexões sobre ensino de filosofia, é esse. Não sei o quanto consegui, no final das contas. Há uma tendência quase irresistível para que os programas de filosofia no nível medio tendam para o lado cosmopolita, com pouca atenção ao lado sistemático. No longo prazo isso pode diluir a importância curricular da filosofia. Pense, por exemplo, na aula de filosofia que, a pedido dos alunos, discute o sentido da vida, o eurocentrismo da razão, ou o racismo estrutural. Os estudantes tem, claro, a motivação para pedir esses debates. Mas qual o alcance e valor de uma aula sobre qualquer desses temas se nós, professores, não oferecemos o suporte de conceitos que são necessários para que esses temas tenham sentido escolar? Quais instrumentos vamos oferecer para que a conversa seja boa, e não fiada, para que a conversa seja boa, e não uma simples guerrilha de posições previamente assumidas? O debate desses temas “cosmopolitas” na sala de aula tem que ter o escoramento instrumental adequado: definição mínima de conceitos básicos, esclarecimento de suposições e implícitos, metáforas e metonímias envolvidas, inferências boas e más etc.
Eu estou lembrando esses temas porque faz já cinco anos que não escrevo nesse blog. Nesse meio tempo publiquei dois livros, o Escola Partida – ética e política na sala de aula e o Filosofia da Educação, ambos pela Contexto. No ano passado comecei a trabalhar em outro projeto de livro, mas empaquei. Eu quero voltar a um tema que me interessa faz muito tempo, a saber, uma descrição da filosofia que seja compatível com sua universalidade. Ou seja, quero chegar a uma definição menos “grega” da filosofia, e para isso preciso fazer muita filosofia modesta, escolar. Lembro que vislumbrei esse projeto em 2015, mas não consegui ir adiante, tal a quantidade de material e de sustos e pânicos que tive com isso. No final do ano passado, diante de mais fracassos, comecei a escrever notas esparsas, sobre alguns aspectos do projeto. Há um lugar nessas notas para temas de ensino de filosofia, mesmo que isso não fique muito evidente. Assim, estou fazendo essa postagem para avisar a algum eventual visitante deste blog que, se quiser me acompanhar por lá, será um prazer. O link é esse:
https://ronai.substack.com/p/o-animal-digiana-1
Não é um blog, e sim uma newsletter. Ou seja, a pessoa se inscreve (e sai quando quer) e recebe um mail com o texto. Tenho conseguido manter a coisa com boa regularidade, duas vezes ao mês, desde outubro do ano passado. Fique à vontade. Abraço!