“Filosofia é uma coisa que discute filosofia”? Vamos jogar a toalha?

“Filosofia é uma coisa que discute filosofia” é uma afirmação de Millor Fernandes, que nesse ponto parece ter se inspirado em Derrida, como se verá mais abaixo. Quero anotar algumas ideias que me ocorreram ao ler o livro de Alejandro Cerletti, O ensino de filosofia como problema filosófico. Ali ele pergunta se é possível a transmissão de algo cuja identificação é problemática. Esse “algo” é a filosofia. A pergunta tem como ponto de partida a afirmação de que não é possível encontrar uma resposta unívoca para identificar o que é a filosofia.
“… como sabemos, encontrar uma resposta unívoca para ‘que é filosofia’ não somente não é possível, mas cada uma das eventuais respostas poderia dar lugar a concepções diferentes da filosofia e do filosofar (…).”
Por que não é possível chegar a uma resposta única? Essa impossibilidade é de tipo lógico ou empírico-político-social? No primeiro caso seria a própria natureza do tema – o que é a filosofia – que não admite consenso. No segundo caso seria o fato de que não estudamos e conversamos suficientemente sobre o assunto. A posição de Cerletti parece aproximar-se da primeira opção. Ele insiste que a pergunta “não admite, de modo algum, uma resposta única.”
Ele indica (aparentemente desde um ponto de vista de descrição sociológica) as seguintes identidades da disciplina:
a) “essencialmente o desdobramento de sua história”;
b) “desnaturalização do presente”;
c) “exegese de fontes filosóficas”;
d) “exercício problematizador do pensamento sobre todas as questões”.
e) “um auxílio para o bom viver”;
f) “complicação inexorável da existência”;
g) “fundamentar a vida cidadã;
h) “crítica radical da ordem estabelecida”;
Podemos pensar em outras identidades (uma forma de vida”, um campo técnico profissional como qualquer outro) bem como combiná-las.
Voltemos à frase “não é possível encontrar uma resposta única para o que é filosofia”. A afirmação é provocante: como podemos falar sobre algo cuja identidade não admite consenso? Cerletti concede que há um “espaço comum”, que há “algo germinal no filosofar dos filósofos”, mas que não é “nem uma definição de filosofia, nem um conteúdo filosófico especifico” :
Esse espaço em comum entre filósofos e aprendizes será antes uma atitude: a atitude de suspeita, questionadora ou crítica, do filosofar. O que haveria que tentar ensinar seria, então, esse olhar agudo, que não quer deixar nada sem revisar, essa atitude radical que permite problematizar as afirmações ou colocar em dúvida aquilo que se apresenta como óbvio, natural ou normal.
Dada a vagueza inerente a esses conceitos (suspeita, olhar agudo, radicalização, dúvida) é inevitável concluir que
“o ensino de filosofia é, basicamente, uma construção subjetiva, apoiada em uma série de elementos objetivos e conjunturais.”
Fica aberto o espaço para um decisionismo no ensino de filosofia:
“Tentaremos mostrar que, para levar adiante a tarefa de ensinar filosofia, uma série de decisões devem ser adotadas. Decisões que são, em primeiro lugar, filosóficas (…).”
Esse ponto fica bem resumido na síntese de Perencini (em Filosofia e Educação, vol.9, n.2, 2017), que afirma que Cerletti
“(…) indica que, não sendo a filosofia um saber cuja identificação é consensual, a tarefa de ensinar promoverá no professor uma série de decisões subjetivas a serem tomadas, para além das diretrizes sobre o que e como ensinar. Perguntas tais como ‘que é e por que ensinar filosofia?’ e ainda ‘se a filosofia se ensina, de quais modos seria possível?’ estão imanentes ao seu ofício de dar aulas. Em suma, tais questões partem da necessidade de definição estatutária sobre esse saber que efetivamente se responde como reflexão filosófica.”
A conclusão parece ser essa: já que a identificação da filosofia não é consensual, o professor deve tomar decisões subjetivas sobre o quê ensinar e como ensinar.
Abrem-se aqui alguns pontos para reflexão, que vou apenas listar como uma agenda para tratamento.
Em primeiro lugar creio que há a questão que “como sabemos” que não há consenso ou resposta unívoca? Há alguma enquete ou pesquisa sobre o tema ou devemos confiar apenas em nossa intuição, apoiada no fato lembrado por Cerletti:
“Poder-se-á abordar e consequentemente ensinar, por exemplo, Nietzsche desde a perspectiva filosófica de Heidegger ou de Deleuze, ou Hegel desde a de Marx, Aristóteles desde Tomás de Aquino, ou também ensinar Hegel desde uma postura hegeliana, ou a tal ou qual autor desde a concepção de filosofia que tenha o professor, ou do modo que o docente considere mais pertinente, de acordo com seus conhecimentos, suas preferencias e sua capacidade.”
Porque são possíveis tantas posturas? A ideia de uma cesta de ovos filosóficos é inspirada em Derrida, para quem o filósofo é alguém cuja essencialidade consiste em interrogar-se sobre a própria filosofia. Já que cada um pode escolher sua postura, segue-se uma pluralidade delas e diante dessa quantidade de “atitudes” devemos concluir ou ficar sabendo que não há univocidade, para além do “espaço comum” do “olhar agudo” e suas variantes. Há claramente um “non sequitur” aqui. Não se segue do fato de que existem muitas metodologias, correntes e escolas, que não há consenso ou univocidade sobre características comuns. Cerletti responde a essa objeção com o conceito de “olhar” e suas variantes, como já indiquei acima. Parece ser a jogada que nos resta nesse ponto difícil. Devemos jogar a toalha aqui e aceitar a solução proposta por Cerletti, a saber, que o refúgio para identidade da filosofia seja esse espaço comum da dúvida radical, do olhar agudo, da atitude crítica, etc? Estou convencido de que não. Mais do que isso, creio que a posição de Cerletti – que de resto me parece ser a dominante nos estudos sobre “filosofia e ensino de filosofia” entre nós – nos conduz a certas dificuldades para as quais, nos moldes de sua reflexão – não temos boas saídas.
As primeiras dificuldades ficam implícitas no que apresentei e não me ocuparei delas: centramento na história da filosofia e vagueza conceitual do “olhar”. Tratei desses pontos em Ensino de Filosofia e Currículo e remeto o leitor para o livro. A dificuldade que me interessa deriva do fato de Cerletti deixar sem tratamento algum um tema de crescente interesse: como podemos dar conta de uma identidade mais abrangente (isto é, menos eurocêntrica) para a filosofia? Como podemos responder para nossos alunos sobre a existência ou não de filosofia na Índia, na China, na África, já que nossas listas são sempre de nomes que começam em grego? O pensamento oriental não é filosófico? Se sim, porque não tratamos dele? Seria apenas o nosso eurocentrismo que nomeia Tales e Sócrates como pais fundadores da filosofia? Cerletti escreve que
“Ao fim e ao cabo, não é outra coisa senão a incômoda insistência do velho Sócrates em perfurar as afirmações até faze-las cambalear (…)”
Bastaria um risco no papel para resolver o problema, escrever, por exemplo, “Confúcio” na lista? Ou isso confundiria tudo? Temos no Brasil de hoje muita pressão, por exemplo, para incluir na agenda a discussão sobre filosofia africana. Devemos, mais uma vez, comer o mingau pela beirada e falar apenas em “pensamento”, varrendo para baixo do tapete essas questões? “Filosofia grega”, “pensamento africano” e seguimos?
Gostei muito do livro de Cerletti. Ele tem o grande mérito de ter formulado claramente um dos maiores temas do ensino de filosofia. Mas isso não pode ser tudo. Ou é?

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